Bamboxê Obitikô

Rodolfo Manoel Martins de Andrade é um dos personagens mais destacados da história do candomblé. Babalaô e sacerdote de Xangô, ele é mais lembrado por seu nome iorubá, Bamboxê Obitikô, e é considerado um ancestral de um dos terreiros mais antigos da Bahia, o Ilê Axé IyáNassô Oká, hoje popularmente conhecido como Casa Branca.2 Também aparece nas tradições orais de terreiros no Recife e no Rio de Janeiro. Nascido no reino iorubá de Oyó, provavelmente por volta de 1820, foi escravizado já em idade adulta e enviado para a Bahia, mas em poucos anos obteve sua liberdade.Posteriormente, viajou para diversas províncias do então Império do Brasil, ainda retornando à África. Radicou-se em Lagos, mas voltava sempre ao Brasil. Hoje, tem descendentes nos dois lados do Atlântico.Vale notar que o método divinatório de 16 búzios usado hoje em todo o Brasil, o erindilogun, ou “jogo de búzios”, é frequentemente conhecido, entre os adeptos do candomblé, como o “sistema Bamboxê” (Beniste, 1999, p. 13;Braga, 2011), enquanto na literatura etnográfica o papel de Bamboxê Obitikô no período de formação das religiões afro-brasileiras tem sido frequentemente comentado. Em trabalho recente, apresentei as primeiras informações históricas sobre sua vida, apontando para sua atuação em uma rede de libertos que se estendia da Bahia até Pernambuco, Rio de Janeiro e Lagos (Castillo, 2012).O presente trabalho traz novos dados etnográficos e documentais que contribuem com nuanças importantes para a reconstrução histórica de sua história de vida singular, contextualizando sua escravização no quadro político da queda do império de Oyó e do fim do tráfico atlântico de escravos. O texto também analisa suas atividades religiosas no Rio de Janeiro, onde, nas duas últimas décadas do século XIX, Bamboxê Obitikô atraiu uma comunidade de filhos de santo e clientes. Seu status como líder religioso nessa cidade — onde os falantes de línguas bantus eram muito mais numerosos do que os falantes de iorubá — demonstra a importância da Bahia na disseminação do culto aos orixás em outras partes do Brasil. Finalmente, este trabalho aponta para vínculos indiretos entre Bamboxê e um dos mais conhecidos personagens negros do Rio, o alferes Candido de Fonseca Galvão, cujo pai, o liberto nagô Bemvindoda Fonseca Galvão, tinha laços com o Ilê Axé Iyá Nassô Oká por intermédio da ialorixá Marcelina da Silva (Obá Tossi).Do cativeiro à liberdade Não há consenso nas tradições orais sobre as circunstâncias da vinda de Bamboxê à Bahia. Algumas dizem que ele veio como livre, enquanto outras afirmam que era escravizado. A documentação confirma esta última versão. Seu senhor, Manoel Martins de Andrade, era um imigrante português que dividia seu tempo entre Salvador e uma propriedade rural, a fazenda Mutá, no município de Jaguaripe, recôncavo da Baía de Todos os Santos. Andrade se aventurava pequeno de cativos. Quando morreu, em 1871, tinha apenas cinco escravos adultos. Nos anos anteriores, uns 15 outros tinham vivenciado o cativeiro sob seu domínio, sendo posteriormente vendidos a terceiros ou alforriados. Um desses foi Rodolfo Nagô, batizado o final de 1850, quando a participação brasileira no comércio atlântico de escravos estava chegando ao seu fim.Embora o desembarque de cativos africanos fosse proibido em 1831, na prática a lei teve pouco efeito. Apenas à província da Bahia chegaram mais de 60 mil africanos escravizados ao longo da década de 1840-1850.4 Diferentemente da região sudoeste do Brasil, onde as redes comerciais do tráfico se organizavam em torno dos portos da África centro-oeste, os mercadores negreiros na Bahia tinham negócios significativos no litoral do golfo do Benim, em cidades como Uidá e Lagos. Durante o tráfico ilegal, a maioria dos cativos que chegava à Bahia era nagô (falantes de iorubá), aprisionada por guerras regionais relacionadas com a queda do império de Oyó. Até 1850, essa nação formava três quartos da população africana de Salvador, e seu idioma se tornou uma língua franca na cidade, usada por várias etnias (Reis e Mamigonian, 2004, p. 80).Quando Bamboxê atravessou o Atlântico no porão do navio negreiro, é bem provável que muitos dos outros cativos fossem nagôs como ele. Bamboxê foi batizado em 26 de dezembro de 1850 na freguesia rural de Pirajuia, pertencente a Jaguaripe. O ritual aconteceu em um oratório particular,na casa do sogro de seu senhor.5 Segundo as regras brasileiras, os africanos tinham de ser batizados em até um ano após sua chegada, o que indica que Bamboxê deve ter desembarcado na Bahia por volta de 1849. O registro de seu batismo não oferece muitos detalhes, descrevendo-o apenas como “Rodolfo Nagô, adulto”, mas outros documentos sugerem que a essa altura ele tivesse 20 e poucos anos de idade.6 Junto com ele, dois outros nagôs, escravos do sogro,também receberam o sacramento. Pirajuia tinha poucos habitantes, e os escravos formavam uma minoria da população. Naquele ano, por exemplo, de um total de 143 batismos realizados na freguesia, apenas 21 (15%) eram escravos,sendo a maioria desses pardos. Apenas oito eram africanos: seis nagôs e dois tapas (nupes).7 A fazenda Mutá ocupava a ponta de uma península, e, quando a maré enchia, o acesso era apenas por embarcação. Lá, Bamboxê provavelmente vivia com poucas oportunidades para contatos com outros nagôs, a não ser outros cativos de seu senhor.A documentação indica que Manoel Martins de Andrade era um senhor intransigente, que não hesitava em recorrer à violência quando um de seus escravos resistia a uma ordem. Em setembro de 1852, Andrade solicitou permissão da polícia para punir um escravo, Luís Nagô. Segundo o senhor, Luís era desobediente e devia receber 400 chibatadas. Mas o chefe de polícia considerou severidade exagerada e autorizou “apenas” 150 açoites. Alguns anos depois, “Rodolfo Nagô comprou sua alforria por 1:750$000 réis. A transação aconteceu em Salvador, em 22 de maio de 1857, seis anos e meio depois de seu batismo. O curto período de sua escravidão certamente influenciou o valor pago, que foi acima da média paga para homens de sua idade. Um dia depois, a nagô liberta Marcelina da Silva, ialorixá do terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, vendeu outro africano ao senhor de Bamboxê pela metade do valor que Bamboxê havia pago por sua alforria.8 Embora a escritura da venda não faça qualquer menção à alforria de Rodolfo Nagô, o curto espaço de tempo entre as duas transações sugere que houvesse uma espécie de acordo para compensar Andrade pela perda dos serviços de Bamboxê (Castillo, 2012, p. 80-81).Todas as tradições orais se referem a uma amizade entre a ialorixá e o babalaô,apontando para o envolvimento deste nas atividades religiosas do Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Em uma entrevista dada a Pierre Verger em meados do século XX, Mãe Senhora, tataraneta de Marcelina, afirmou que Bamboxê veio ao Brasiljunto com Marcelina com o propósito de prestar serviços no terreiro, quando esta retornou após uma viagem de sete anos à cidade iorubá de Ketu, junto com Iyá Nassô, fundadora do Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Verger, 1992, p. 89).9 Essa versão da chegada de Bamboxê à Bahia tem sido amplamente difundida entre o povo de santo e também na literatura acadêmica. Em trabalhos anteriores,Luis Nicolau Parés e eu apresentamos provas documentais de que a jornada atlântica das duas ialorixás aconteceu no final de 1837, mas mostramos também que o destino foi Uidá, um porto daomeano localizado a 175 quilômetros a sudoeste de Ketu. Ademais, Iyá Nassô nunca retornou ao Brasil, permanecendo em Uidá, onde ela e seu marido fundaram outro templo, enquanto Marcelina estava de volta à Bahia até maio de 1839 (Castillo e Parés, 2007, p. 8;Parés e Castillo, 2015, p. 14 e 23).A evidência documental sobre essa sequência de acontecimentos é bastante sólida. Ainda é possível que Bamboxê conhecesse as ialorixás na África,mas no caso provavelmente teria sido em Uidá em vez de em Ketu. Uidá era um dos portos mais importantes do tráfico negreiro, e centenas de milhares de cativos passaram por lá durante sua migração forçada ao Brasil. Nos portos negreiros, de vez em quando os cativos aproveitavam-se de oportunidades para conversar com outros. Foi o caso de Mahommah Gardo Baquaqua, capturado no reino de Borgu, ao norte do Daomé, e levado para o Brasil entre 1840 e 1845.Ao chegar a Uidá, encontrou um de seus conterrâneos, que há anos morava lá como escravo (Eltis, 2004; Lovejoy, 2004; Law e Lovejoy, 2007, p. 147-148).

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