sexta-feira, 31 de março de 2017

Bamgbosê Obitikô e a expansão do culto aos orixás(século XIX): uma rede religiosa afroatlântica


Rodolfo Manoel Martins de Andrade é um dos personagens mais destacadosda história do candomblé. Babalaô e sacerdote de Xangô, eleé mais lembrado por seu nome iorubá, Bamboxê Obitikô, e é consideradoum ancestral de um dos terreiros mais antigos da Bahia, o Ilê Axé IyáNassô Oká, hoje popularmente conhecido como Casa Branca.2 Também aparecenas tradições orais de terreiros no Recife e no Rio de Janeiro. Nascido noreino iorubá de Oyó, provavelmente por volta de 1820, foi escravizado já emidade adulta e enviado para a Bahia, mas em poucos anos obteve sua liberdade.Posteriormente, viajou para diversas províncias do então Império doBrasil, ainda retornando à África. Radicou-se em Lagos, mas voltava sempreao Brasil. Hoje, tem descendentes nos dois lados do Atlântico.Vale notar que o método divinatório de 16 búzios usado hoje em todo oBrasil, o erindilogun, ou “jogo de búzios”, é frequentemente conhecido, entreos adeptos do candomblé, como o “sistema Bamboxê” (Beniste, 1999, p. 13;Braga, 2011), enquanto na literatura etnográfica o papel de Bamboxê Obitikô no período de formação das religiões afro-brasileiras tem sido frequentementecomentado. Em trabalho recente, apresentei as primeiras informações históricassobre sua vida, apontando para sua atuação em uma rede de libertos quese estendia da Bahia até Pernambuco, Rio de Janeiro e Lagos (Castillo, 2012).O presente trabalho traz novos dados etnográficos e documentais que contribuemcom nuanças importantes para a reconstrução histórica de sua históriade vida singular, contextualizando sua escravização no quadro políticoda queda do império de Oyó e do fim do tráfico atlântico de escravos. O textotambém analisa suas atividades religiosas no Rio de Janeiro, onde, nas duasúltimas décadas do século XIX, Bamboxê Obitikô atraiu uma comunidade defilhos de santo e clientes. Seu status como líder religioso nessa cidade — ondeos falantes de línguas bantus eram muito mais numerosos do que os falantesde iorubá — demonstra a importância da Bahia na disseminação do culto aosorixás em outras partes do Brasil. Finalmente, este trabalho aponta para vínculosindiretos entre Bamboxê e um dos mais conhecidos personagens negrosdo Rio, o alferes Candido de Fonseca Galvão, cujo pai, o liberto nagô Bemvindoda Fonseca Galvão, tinha laços com o Ilê Axé Iyá Nassô Oká por intermédio daialorixá Marcelina da Silva (Obá Tossi).Do cativeiro à liberdadeNão há consenso nas tradições orais sobre as circunstâncias da vinda deBamboxê à Bahia. Algumas dizem que ele veio como livre, enquanto outras afirmamque era escravizado. A documentação confirma esta última versão. Seusenhor, Manoel Martins de Andrade, era um imigrante português que dividiaseu tempo entre Salvador e uma propriedade rural, a fazenda Mutá, no municípiode Jaguaripe, recôncavo da Baía de Todos os Santos. Andrade se aventurava pequeno de cativos. Quando morreu, em 1871, tinha apenas cinco escravosadultos. Nos anos anteriores, uns 15 outros tinham vivenciado o cativeiro sobseu domínio, sendo posteriormente vendidos a terceiros ou alforriados. Umdesses foi Rodolfo Nagô, batizado o final de 1850, quando a participação brasileirano comércio atlântico de escravos estava chegando ao seu fim.3Embora o desembarque de cativos africanos fosse proibido em 1831, na práticaa lei teve pouco efeito. Apenas à província da Bahia chegaram mais de 60mil africanos escravizados ao longo da década de 1840-1850.4 Diferentementeda região sudoeste do Brasil, onde as redes comerciais do tráfico se organizavamem torno dos portos da África centro-oeste, os mercadores negreiros naBahia tinham negócios significativos no litoral do golfo do Benim, em cidadescomo Uidá e Lagos. Durante o tráfico ilegal, a maioria dos cativos que chegavaà Bahia era nagô (falantes de iorubá), aprisionada por guerras regionais relacionadascom a queda do império de Oyó. Até 1850, essa nação formava trêsquartos da população africana de Salvador, e seu idioma se tornou uma línguafranca na cidade, usada por várias etnias (Reis e Mamigonian, 2004, p. 80).Quando Bamboxê atravessou o Atlântico no porão do navio negreiro, é bemprovável que muitos dos outros cativos fossem nagôs como ele.Bamboxê foi batizado em 26 de dezembro de 1850 na freguesia rural dePirajuia, pertencente a Jaguaripe. O ritual aconteceu em um oratório particular,na casa do sogro de seu senhor.5 Segundo as regras brasileiras, os africanostinham de ser batizados em até um ano após sua chegada, o que indica queBamboxê deve ter desembarcado na Bahia por volta de 1849. O registro de seubatismo não oferece muitos detalhes, descrevendo-o apenas como “RodolfoNagô, adulto”, mas outros documentos sugerem que a essa altura ele tivesse 20e poucos anos de idade.6 Junto com ele, dois outros nagôs, escravos do sogro,também receberam o sacramento. Pirajuia tinha poucos habitantes, e os escravosformavam uma minoria da população. Naquele ano, por exemplo, de umtotal de 143 batismos realizados na freguesia, apenas 21 (15%) eram escravos,sendo a maioria desses pardos. Apenas oito eram africanos: seis nagôs e doistapas (nupes).7 A fazenda Mutá ocupava a ponta de uma península, e, quandoa maré enchia, o acesso era apenas por embarcação. Lá, Bamboxê provavelmentevivia com poucas oportunidades para contatos com outros nagôs, a nãoser outros cativos de seu senhor.A documentação indica que Manoel Martins de Andrade era um senhorintransigente, que não hesitava em recorrer à violência quando um de seusescravos resistia a uma ordem. Em setembro de 1852, Andrade solicitou permissãoda polícia para punir um escravo, Luís Nagô. Segundo o senhor, Luísera desobediente e devia receber 400 chibatadas. Mas o chefe de polícia consideroua severidade exagerada e autorizou “apenas” 150 açoites. Alguns anosdepois, “Rodolfo Nagô comprou sua alforria por 1:750$000 réis. A transaçãoaconteceu em Salvador, em 22 de maio de 1857, seis anos e meio depois deseu batismo. O curto período de sua escravidão certamente influenciou o valorpago, que foi acima da média paga para homens de sua idade. Um dia depois, anagô liberta Marcelina da Silva, ialorixá do terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, vendeuoutro africano ao senhor de Bamboxê pela metade do valor que Bamboxêhavia pago por sua alforria.8 Embora a escritura da venda não faça qualquermenção à alforria de Rodolfo Nagô, o curto espaço de tempo entre as duas transaçõessugere que houvesse uma espécie de acordo para compensar Andradepela perda dos serviços de Bamboxê (Castillo, 2012, p. 80-81).Todas as tradições orais se referem a uma amizade entre a ialorixá e o babalaô,apontando para o envolvimento deste nas atividades religiosas do Ilê AxéIyá Nassô Oká. Em uma entrevista dada a Pierre Verger em meados do séculoXX, Mãe Senhora, tataraneta de Marcelina, afirmou que Bamboxê veio ao Brasiljunto com Marcelina com o propósito de prestar serviços no terreiro, quandoesta retornou após uma viagem de sete anos à cidade iorubá de Ketu, juntocom Iyá Nassô, fundadora do Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Verger, 1992, p. 89).9 Essaversão da chegada de Bamboxê à Bahia tem sido amplamente difundida entreo povo de santo e também na literatura acadêmica. Em trabalhos anteriores,Luis Nicolau Parés e eu apresentamos provas documentais de que a jornadaatlântica das duas ialorixás aconteceu no final de 1837, mas mostramos tambémque o destino foi Uidá, um porto daomeano localizado a 175 quilômetrosa sudoeste de Ketu. Ademais, Iyá Nassô nunca retornou ao Brasil, permanecendoem Uidá, onde ela e seu marido fundaram outro templo, enquantoMarcelina estava de volta à Bahia até maio de 1839 (Castillo e Parés, 2007, p. 8;Parés e Castillo, 2015, p. 14 e 23).A evidência documental sobre essa sequência de acontecimentos é bastantesólida. Ainda é possível que Bamboxê conhecesse as ialorixás na África,mas no caso provavelmente teria sido em Uidá em vez de em Ketu. Uidá eraum dos portos mais importantes do tráfico negreiro, e centenas de milharesde cativos passaram por lá durante sua migração forçada ao Brasil. Nos portosnegreiros, de vez em quando os cativos aproveitavam-se de oportunidades paraconversar com outros. Foi o caso de Mahommah Gardo Baquaqua, capturadono reino de Borgu, ao norte do Daomé, e levado para o Brasil entre 1840 e 1845.Ao chegar a Uidá, encontrou um de seus conterrâneos, que há anos moravalá como escravo (Eltis, 2004; Lovejoy, 2004; Law e Lovejoy, 2007, p. 147-148).



continua.......

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